InícioEditorialEconomia70% dos alunos de universidades públicas não podem arcar com mensalidade

70% dos alunos de universidades públicas não podem arcar com mensalidade

O debate acerca da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 206/2019, que prevê a cobrança de mensalidades nas universidades públicas, se expandiu para fora do Congresso Nacional e vem movimentando as redes sociais em todo o país, inclusive aqui no estado. A medida ainda está sendo julgada como constitucional ou não, mas já esbarra em uma dificuldade prática: na Universidade Federal da Bahia (Ufba), por exemplo, 69,1% dos alunos possuem renda familiar média per capita de até 1,5 salário mínimo. 

Isso significa que mais da metade dos estudantes da Ufba têm renda de no máximo R$1.818, segundo a própria universidade. Enquanto isso, apenas 12% dos alunos possuem rendimento familiar acima de R$3.636, ou seja, três mínimos. Sob a falsa justificativa de que a maior parte do corpo estudantil é formada pela elite, a PEC esbarra na própria realidade financeira dos estudantes para se tornar viável economicamente. No cenário nacional, 70% dos alunos tem renda de até 1,5 salário mínimo. 

Ruan Amorim, 20, é natural do município de Capela do Alto Alegre e se mudou para Salvador em 2019 para cursar Comunicação na Ufba. O jovem faz parte dos 27% de alunos da universidade que é ou já foi beneficiado por alguma ação de assistência estudantil. No caso dele, o auxílio moradia recebido pela instituição é o que torna possível a sua permanência fora de sua cidade de origem.

“Acho totalmente inviável estudar em uma universidade pública que cobre mensalidade. No meu caso, eu preciso de auxílio para conseguir me manter e estudar, sem ele eu não conseguiria pagar o meu aluguel. Um cenário que a Ufba passe a exigir mensalidade é completamente distante da minha realidade”, afirma Ruan. Em 2021, a UFBA destinou R$32,4 milhões para a assistência dos alunos. 

Ruan Amorim recebe auxílio moradia da Ufba 

(Foto: Arquivo Pessoal)

Se a PEC for aprovada, é provável que o estudante não seja um dos pagantes. Mesmo assim, Ruan discorda da medida. “De uma forma ou de outra, as universidades já são pagas indiretamente pela população brasileira através dos impostos”, completa. 

Uma possível cobrança estipulada para os estudantes da rede pública de ensino atrapalharia os planos de vida de Julia Villa Nova, 22. A jovem, além de cursar Biotecnologia na UFBA, também é estudante de Nutrição em uma faculdade particular de Salvador. Caso a universidade federal passasse a cobrar mensalidade, seria inviável para a aluna arcar com os dois custos. 

Julia, que já passou pelos cursos de Engenharia Ambiental e Química na Ufba, acredita que a cobrança dos estudantes não deve solucionar problemas estruturais.“Cobrar mensalidade não vai melhorar as condições de estrutura e segurança. Esses problemas deveriam ser tratados com a verba dos impostos que nós pagamos e o que observamos são imensos cortes nas verbas para a educação pública”, defende. 

Além de estudante da Ufba, Julia cursa Nutrição em uma faculdade particular

(Foto: Arquivo Pessoal)

O pró-reitor de Ensino e Graduação da Ufba, Penildon Silva Filho, alega que a proposta que quer mudar a Constituição planeja retirar a responsabilidade do governo federal na manutenção da educação pública. “Quando uma cobrança é estabelecida, o Estado deixa de ser o responsável por manter a universidade e vai repassando cada vez menos recursos”, diz.

Apesar de ser a favor de que pessoas com mais dinheiro paguem mais impostos, o pró-reitor não acredita que a PEC seja o caminho para resolver a questão tributária no país. “Se o objetivo é fazer os ricos pagarem mais pelos serviços públicos, isso deve ser feito através de uma reforma tributária e não pela cobrança da mensalidade nas universidades”, complementa. 

Para o ex-aluno da Ufba Thiago Calbo, 28, a notícia de que parlamentares desejam estipular cobrança de mensalidade aos estudantes é mais um indicativo da tentativa de desmonte da educação pública. “As instituições de ensino superior públicas têm um papel fundamental na sociedade, pela possibilidade de furarmos bolhas sociais e porque nelas se concentram os grupos de Pesquisa e de Extensão mais importantes e influentes”, afirma. 

Egresso do curso de Psicologia, Thiago entrou na universidade em 2013 e relembra que na época sua família não possuía condições financeiras de bancar uma faculdade privada. “Não existe uma obrigação de que o egresso retribua à sociedade o investimento que está depositou nele, contudo, foi assim que me senti. Durante minha graduação busquei estar inserido no SUS, nos estágios, extensões e afins, o que não mudou depois de formado”, conta. 

Estudante de Psicologia da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), Cristiane Martins, 21, também é contrária à medida e defende que as universidades sejam públicas e populares.

“As instituições hoje acolhem um número alto de estudantes de baixa renda, o que promove a integração da população periférica no acesso à educação. A universidade deve ser para todos, é um direito do povo brasileiro, e é uma grande potência de produção de saberes”, afirma. 

A estudante de Psicologia Cristiane Martins lamenta que a PEC possa avançar na CCJ

(Foto: Arquivo Pessoal)

O que diz a PEC

A PEC 206/2019 é de autoria do deputado federal General Peternelli (UB-SP) e prevê a alteração de um trecho da Constituição para estabelecer que as universidades públicas cobrem mensalidades, que devem variar de acordo com a renda. Para os alunos que comprovarem não ter recursos suficientes, a gratuidade deverá ser mantida. 

A definição do corte de renda será definida pelo poder executivo, mas caberá a uma comissão de cada instituição analisar as gratuidades, respeitando os valores estabelecidos. A proposta não detalha como este controle será feito. Na terça-feira (24), a PEC deveria passar pelo primeiro passo do longo caminho até ser aprovada, a Comissão de Constituição e Justiça da (CCJ) da Câmara dos Deputados. 

Essa comissão tem como finalidade definir se a PEC é constitucional e não realiza votação sobre a matéria em si. Porém, a proposta de emenda foi retirada da pauta da sessão por conta da ausência do relator, deputado Kim Kataguiri (UB-SP), que é favorável à medida. Após longo debate, os parlamentares aprovaram um requerimento para realização de uma audiência pública sobre o tema. Só depois a proposta retornará à pauta. 

Se aprovada na CCJ, a PEC será encaminhada para uma comissão especial, que discutirá o mérito. Depois, a proposta ainda precisará de duas votações no plenário da Câmara antes de seguir para votação no Senado. Em 2017, uma proposta parecida, que previa a cobrança de estudantes de pós-graduação em universidades públicas, foi reijeitada pela Câmara. 

Constitucionalidade

Um dos pontos-chaves na discussão da proposta é justamente o que a CCJ deve decidir: a constitucionalidade. A polêmica esbarra no artigo 206 da Constituição de 1988, que estabelece a “gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais”. Para o professor de Direito Constitucional Rodrigo Gomes, a justificativa para tornar a proposta de emenda de acordo com a Carta Magna brasileira é o princípio da isonomia. 

A isonomia prevê que para alcançar a igualdade, é preciso levar em conta as desigualdades já existentes na sociedade e tomar medidas que possam parecer desiguais. Em nome da igualdade, por tanto, pessoas com mais dinheiro pagariam mais pelo serviço público. 

“A PEC passa por cima de um terreno que chamamos de isonomia, nosso valor constitucional que permite tratar desigualmente os desiguais. Portanto, na teoria a PEC poderia ser aprovada mediante a este argumento”, explica Rodrigo Gomes.

O professor, no entanto, acredita que a proposta não leva em consideração a realidade financeira dos estudantes e que, por isso, não teria como funcionar na prática. “Teoricamente poderia haver a cobrança pela leitura que se faz da isonomia, mas ela esbarraria numa outra questão porque o constitucionalismo se dá na teoria e na prática. Quando olhamos o ordenamento social, vemos que 70% dos alunos das universidades públicas são de renda per capita de 1,5 salário mínimo”, afirma o professor. 

Além das dificuldades práticas, Rodrigo Gomes defende que a proposta representa um retrocesso constitucional. “Quando olharmos para os efeitos sociais da emenda, ela vai se tornar inconstitucional”, diz. Presidente do Sindicato dos Professores das Instituições Federais do Ensino Superior da Bahia (Apub), Emanuel Lins vê na medida uma violação à educação pública. “É um ataque à educação pública como uma política social de melhoria à vida das pessoas”, critica. 

Instituições 

A Bahia possui seis instituições públicas federais de ensino superior espalhadas pelo estado. São elas: Universidade Federal da Bahia (Ufba), Universidade Federal do Oeste da Bahia (Ufob), Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (Ufrb), Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), Instituto Federal da Bahia (Ifba) e IFBaiano. 

Além de quatro universidades públicas estaduais: Universidade do Estado da Bahia (Uneb), Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) e Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc). Entre todas, a Ufba foi a única que se posicionou publicamente contra a PEC. Em nota, a Reitoria afirmou que é contrária à proposta e ressaltou que ela é ineficaz para enfrentar o déficit de financiamento da educação superior federal. 

“Diante de tão grave ameaça, a Reitoria da UFBA vê-se instada a reafirmar que a cobrança de mensalidades é deletéria à Universidade Pública, seja por seu potencial de criar e acirrar desigualdades entre áreas e cursos, comprometendo a natureza da universidade, seja por dividir a comunidade estudantil em cidadãos e clientes, seja enfim por se tratar de medida sabidamente ineficaz para o enfrentamento do problema que se arvora a resolver”, pontua. 

Também através de nota, o Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif) pediu o arquivamento da PEC, por acreditar que a proposta “em nada contribui para o avanço da política educacional brasileira”.

*Com orientação da subchefe de reportagem Monique Lôbo.

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