InícioAposentado morou em hospital por 17 anos e foi criado por enfermeiras

Aposentado morou em hospital por 17 anos e foi criado por enfermeiras

Com direito ao próprio quarto e o afeto das enfermeiras do Hospital Geral, primeira maternidade de Cuiabá (MT), o aposentado Sílvio de Souza, hoje com 74 anos, foi morador do local durante quase duas décadas. Entre os corredores e cômodos, Sílvio criou suas referências de lar e família, representadas principalmente pelas profissionais que o acolheram como filho.

Uma das certezas que Sebastiana Maria do Carmo, mãe biológica de Sílvio, teve quando descobriu que estava grávida, era de que não teria condições de criar o filho. O parto foi realizado no Hospital Geral, onde Sílvio viveria entre os médicos e enfermeiras pelos próximos 17 anos.

“Ela conversou com um dos médicos, que era diretor do hospital na época, e explicou que não teria como ficar comigo. Minha mãe acompanhou meu pai, que era garimpeiro, trabalhava em Poxoréu (MT), achou uma pedra e foi vender. Tinha o sonho de achar uma pedra que iria emancipá-lo pela vida toda”, conta.

Sílvio ainda bebêAtualmente, o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) não permitiria que uma história como a de Sílvio se repetisse. No entanto, o marco regulatório foi sancionado em 1990, quando ele já tinha 43 anos.

Rodeado de carinho, cuidado e afeto, como reforça, Sílvio foi crescendo e amadurecendo em meio ao ambiente hospitalar. O aposentado tinha o próprio quarto no antigo prédio da primeira maternidade de Cuiabá.

Além dos brinquedos que costumava ganhar, o campinho nos fundos da unidade de saúde e a festa de Dias das Crianças organizada pelo Hospital Geral fazem parte de suas melhores memórias.
Com as mãos, Sílvio refaz o “caminho” de como chegar até o quarto. Os corredores do ambiente hospitalar viravam espaços para brincar na “casa” do aposentado.

Sílvio e as enfermeiras do Hospital GeralO refeitório do Hospital Geral, onde médicos, enfermeiras e acompanhantes dos pacientes costumavam comer, também era onde Sílvio fazia suas refeições. A memória dele ainda guarda a disposição das mesas e cadeiras no local.

“Tinham três conjuntos de mesa: uma mesa com oito cadeiras para as enfermeiras, uma mesa com quatro cadeiras para os médicos e duas mesas com quatro cadeiras para os acompanhantes dos pacientes. Eu sempre comia com as enfermeiras”.

Conforme os anos iam se passando, ele logo entendeu que sua infância era diferente das outras crianças, mas afirma que isso não foi motivo de revolta.

Pelo contrário, Sílvio se emociona ao lembrar de como era tratado pelos funcionários do Hospital Geral.

Hospital Geral em Cuiabá“Algumas [das profissionais do hospital] tinham comigo uma relação de determinar, aconselhar e de dar ordens mesmo. Mas, as enfermeiras não. Elas eram só carinho mesmo. Eu era danado quando criança, mas elas não deixavam ninguém me fazer mal. A infância não foi difícil. Era tratado como um príncipe”, brinca.

Além das referências de amor e “família”, era nas enfermeiras que Sílvio encontrava acolhimento e conselhos, quando precisava.

Uma das funcionárias que ocupam lugar especial na memória de Sílvio trabalhou como administradora do local. Ana Torres, conhecida na época como “dona Ana”, é sua principal referência de amor materno.

Anos depois de deixar o Hospital Geral para tentar a sorte no Rio de Janeiro, o destino de Sílvio e Ana Torres voltou a se cruzar. Já idosa e com problemas de saúde causados pela asma, ela viveu os últimos anos de vida com “o filho”.

“Ela morreu na minha casa, mas não é como se tivesse retribuído algo à ela. Era minha obrigação. Não tenho como pagar o que ela fez por mim, não tem valor. Tudo que eu pudesse fazer ainda seria pouco”, ressalta.

Em uma das memórias do amor de Ana Torres, Sílvio conta do dia em que ela lhe deu a própria bola, já que, por não ser um bom jogador de futebol, ele não era prioridade entre os meninos que jogavam no campinho atrás do Hospital Geral.

Sílvio no Rio de Janeiro“Quando falava no ‘campinho da maternidade’ todo a gurizada já sabia. Nos fundos do estacionamento, tinha esse campo, vários médicos brincavam também. Eu ficava sempre de fora, cheguei para dona Ana, pedi minha própria bola para brincar e ela me deu”, conta em meio a gargalhadas.

Os médicos do Hospital Geral também participaram do crescimento de Sílvio a ponto de serem considerados irmãos de criação. É dessa forma que Rubem Mauro, filho do médico Clóvis Pitaluga, que chegou a ocupar a direção quando o local era a casa de Sílvio, se refere ao aposentado.

Graças aos médicos e enfermeiras, Sílvio conseguiu, por exemplo, ter acesso a boas escolas da época em Cuiabá.

“Sou super privilegiado, devo ter nascido com uma estrela. Tenho até medo de reencarnar de tão privilegiado que fui, acho que até abusei”, brinca Sílvio.

Também não era raridade que ele passasse os dias com as famílias dos médicos e das enfermeiras.

“As enfermeiras gostavam de me levar para a casa delas. Ia para as fazendas dos médicos por causa da amizade com os filhos. Muitas vezes vejo uma criança abandonada hoje e me corta o coração, vejo quanto fui privilegiado.

Vida fora do Hospital Geral
Sílvio entendeu que era hora de deixar o Hospital Geral após uma troca na direção. O afeto que estava acostumado foi desaparecendo aos poucos e ele deixou de sentir que aquele era seu lar.

“Quando decidi sair do hospital, contei para o Clóvis. Ele disse que não poderia me ajudar muito, mas que podia me dar um trabalho. De bicicleta, fiz cobranças das consultas para ele. Juntei um dinheirinho e fui embora para o Rio de Janeiro, onde morei por dez anos”, lembra.

A mudança também frustrou um dos sonhos que ele nutriu durante a juventude. Para ele, seria um caminho natural se formar médico obstetra, assim como àqueles que fizeram parte de sua vida.

“Fiquei um pouco revoltado de não ser médico, porque tive que tomar essa decisão em determinado momento da minha vida”, diz se referindo a saída do Hospital Geral.

Sílvio com a esposa, filhos e netoPor conta da falta de recursos financeiros, Sílvio conta que viajou para o Rio de Janeiro escondido em um avião da Força Aérea Brasileira. “Espremido no banheiro”, explica encolhendo o corpo como se estivesse de volta na aeronave.

Os laços criados no Hospital Geral foram tão fortes e sólidos, que continuaram reverberando em sua trajetória, mesmo quando ele deixou a unidade de saúde. No Rio de Janeiro, a primeira casa que morou com o sobrinho de uma das enfermeiras.

“Tinha uma amizade de criança com os sobrinhos da Adelaide de Almeida Orro, escrevíamos cartas. Fui recebido na casa do Dilson Ramos de Moraes, sobrinho da Adelaide, onde morei um ano. Tinha um cheque que recebi trabalhando [na cobrança de consultas] e disse que o resto daria um jeito”.

Sílvio trabalhou no setor financeiro e não demorou para entrar no curso de Ciências Contábeis na Faculdade Moraes Júnior. Os anos em terras cariocas foram bem aproveitados, como ressalta o aposentado que foi sócio do Cordão da Bola Preta, um dos blocos de carnaval mais antigos do Brasil, e da Portela.

“Fiz meu curso, morei em casa de estudante no Rio de Janeiro e comia no restaurante universitário. Para conseguir me divertir era no samba. Era universitário e não tinha dinheiro, o que ganhava era para pagar os estudos”.

O aposentado continuou morando no Rio de Janeiro durante alguns anos após se formar, mas decidiu voltar para Cuiabá. Uma das justificativas do aposentado para o retorno foi a vontade de construir sua própria família.

Com a primeira esposa, ele teve três filhos e, além das próprias raízes familiares, Sílvio conquistou sua primeira casa, em Várzea Grande, na região metropolitana de Cuiabá.

É na frente do imóvel que o aposentado escolhe receber a reportagem, rodeado pela família. Orgulhoso, ele tenta chamar o bisneto de um ano para aparecer na foto.

“Quando comprei essa casa não tinha nada, era mato na frente e atrás. Colocaram três postes de energia elétrica logo depois. São muitas memórias nela, foi minha primeira casa de verdade”, conta enquanto mostra cada um dos cômodos.

O retorno para Cuiabá também fez com que a vida de Sílvio e da família biológica se encontrassem quando ele conheceu a única irmã biológica. Margarida, de 73 anos, chegou a morar com o aposentado após enfrentar problemas pessoais.

“Dois anos após meu nascimento, minha mãe teve a Margarida. Um dia elas apareceram no Hospital Geral, eu já tinha cinco anos. Só voltei a ver minha irmã quando voltei do Rio de Janeiro, no final de 1974”.

Sílvio de Souza sentado na porta de casaO reencontro aconteceu após Sílvio procurar a irmã. Na época, ela era vítima de violência doméstica e chegou a morar na casa que o aposentado construiu em Várzea Grande.

Pela primeira vez, ele conseguiu se enxergar em outras pessoas, já que a irmã é “a cara” de Sílvio, como reforça, Júlio Mário, de 45 anos, filho do aposentado. Além do rosto parecido, os irmãos possuem a mesma deficiência em uma das pernas.

“Ajudei ela, morou comigo em casa. Depois ela voltou para ele, até que ele morreu. Margarida ainda mora em Cuiabá. Somos muito parecidos fisicamente, mas quando nos reencontramos, minha mãe biológica já era falecida”.

“Sou um homem de sorte”
A primeira esposa de Sílvio faleceu e, algum tempo depois, ele se casou de novo com Elioenay Marques Alves, de 62 anos, com quem compartilha a vida há 14 anos. O encontro aconteceu por acaso, quando Elioenay dispensou a carona do pai após o trabalho e preferiu ir de ônibus.

“Estava caminhando para o ponto e passei por ele, que me cumprimentou. Respondi e segui meu caminho. Quando olhei para trás, ele ainda estava olhando. Chegou perto e pediu meu celular, falei que precisava para trabalhar. Foi quando ele disse que queria só o número”, lembra a esteticista aposentada enquanto dá risada.

Na época, Sílvio estava morando em um hostel no Centro de Cuiabá. Foi o jeito que ele encontrou para despistar as lembranças impostas pela morte da primeira mulher.

Sílvio e a esposa“Na segunda vez que fui no hostel falei que se ele quisesse só aventura, que fosse procurar outra. Ele disse para morarmos na casa dele, falei que não, que seria na minha casa. Juntamos as coisas dele e fomos. Já se foram 14 anos”, conta.

Apesar da ligação que tem com o primeiro lar que construiu após a vida no Hospital Geral, hoje Sílvio vive com esposa em outro imóvel. No entanto, as memórias que tem com a casa sempre o levam de volta, nem que seja por alguns dias.

“Essa relação com família e amor, foram as enfermeiras que construíram. Elas foram minhas primeiras referências de afeto, passaram isso para mim. Lá [no Hospital Geral], não me faltou afeto”, explica Silvio.

Apesar de algumas lágrimas que teimam em deixar os olhos de Sílvio marejados enquanto conta sobre a infância, o aposentado deixa claro que nunca deixou se abater pelas durezas da vida. Ele prefere se lembrar do amor que teve ao invés do que lhe faltou.

“É difícil pensar nas duas palavras que nunca consegui pronunciar: mamãe e papai. Mas, por outro lado, tive todo esse amor. O maior poder do mundo é o amor, mas o pessoal tem medo. Ficam com medo de amar”.

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