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É doce viver no mar: família baiana vende casa e decide morar num veleiro

Quatro vezes ao dia o mar muda, entre marés altas e baixas. E para acompanhar esse balanço cotidiano, quatro membros de uma família baiana apostaram numa ruptura, se mudando para lá. Após anos em terra firme, com uma casa bonita no Litoral Norte, o casal soteropolitano Daniel e Ana Carolina Cerchiari decidiu vender tudo que não cabia na nova moradia – um pequeno mas aconchegante veleiro de 40 pés chamado Kashiri – e passar a construir um ‘lar doce mar’ com os filhos Heitor, de 8 anos, e Catarina, de 2, na Baía de Todos-os-Santos. Há oito meses, em plena pandemia, o sonho da família Cerchiari flutua próximo ao cais, e em breve vai ganhar os quatro cantos do mundo.

“Não se trata de uma mudança de casa, mas de uma filosofia de vida. A sociedade coloca a gente num caminho comum a todos e esquecemos de realizar nossos verdadeiros sonhos e metas de vida. Seguimos um fluxo de consumir, gastar e ganhar dinheiro. Será que é o sonho de todos? Temos que buscar a vida que queremos, não o que a sociedade impõe como certa. Decidimos seguir o caminho que traçamos. O primeiro passo foi dado, estamos morando a bordo. Foi uma etapa para algo ainda maior, que é rodar o mundo sem data para o retorno”, disse Daniel, arquiteto de 38 anos.  

A pandemia criou uma legião de pessoas que decidiram seguir seus sonhos em meio ao futuro incerto. A consultoria global Oliver Wyman fez uma pesquisa em 2021 sobre o desejo de mudar de vida por conta deste momento incerto. Dez países fizeram parte da pesquisa, incluindo o Brasil, onde 44% dos brasileiros admitiram repensar a vida que levavam antes deste caos. No caso da família náutica, este momento turbulento do mundo foi apenas uma maneira de adiantar uma vontade antiga, que ambos já sonhavam há 20 anos, quando se conheceram num cursinho pré-vestibular. 

O pai de Daniel, Mário Cerchiari, sempre foi a inspiração e quem introduziu este sonho no casal. Há três anos ele faleceu, mas sempre teve paixão pelo mar, tinha barco, competia e deixou o primeiro veleiro para o casal, que já está no terceiro, a embarcação argentina German Frers, de 40 pés. “Já tínhamos este planejamento, a pandemia apenas deu o empurrãozinho. Iria acontecer de qualquer jeito.  Mas está muito claro que a pandemia deu um ‘boom’ na vida náutica. O valor do barco disparou, mais que dobrou neste período, sem contar as peças e manutenção. Também não se acha mais barco para comprar, pois a demanda aumentou mais que a oferta. Tem gente que até tenta comprar no exterior, mas está escasso em todo mundo”, garante Daniel. 

A família segue uma rotina natural, como qualquer outra. Daniel é arquiteto e trabalha normalmente, assim como Ana, fisioterapeuta de 37 anos. Heitor estuda numa escola de Lauro de Freitas e Catarina é a que se sente mais em casa com o cheiro do mar. “Ela nasceu em abril, um mês depois do início da pandemia. Veio pequena morar no barco. É mais estranho para ela morar em terra firme do que no barco. Muita gente fica, ‘meu deus, essa menina não cai no mar?’. Eu dou risada. Ela é tão adaptada que não corre este risco. Claro, estamos sempre olhando, pois se trata de uma criança pequena. Qualquer criança precisa ser assistida, seja na terra ou no mar”, garante Ana. Catarina faz natação, para garantir. 

O lar da família é compacto, mas bem dividido e confortável. Na parte interna da embarcação, o quarto das crianças fica na proa do barco, com desenhos colados na parede, brinquedos e tudo que um quarto infantil tem. Na popa ficam o quarto do casal e o banheiro. A cozinha, como num flat, divide espaço com a sala de estar, que abriga uma televisão que quase não é ligada, além da muda de uma planta Jibóia, a única herança da antiga casa de praia que tinham em Busca Vida, Litoral Norte.  

“É até engraçado. Compramos nosso terreno antes de casar, construímos nossa casa no condomínio Busca Vida, mas assim que ficou pronta vendemos para ir atrás desse sonho. Daniel queria trazer todas as plantas que ele tinha no nosso jardim. Só deixei de trazer uma”, lembra Ana. Na página do casal no Instagram é possível ver todo o processo de mudança, além de acompanhar seu dia a dia (@familiacerchiari).

Ao contrário do que parece, a vida dentro de uma embarcação é divertida para as crianças também. Eles estão atracados no Aratu Iate Clube, onde são sócios. Catarina brinca o dia inteiro, para ela o barco é um parque de diversão. Como a pesca é proibida no lugar, enormes cardumes de tainhas e sardinhas circulam calmamente ao redor do barco, ganhando risos dela. 

Heitor também tira onda. Passou a ser o garoto mais popular e descolado da escola. Os amigos imploram para passar uma tarde na casa dele. “Uma vez convidamos todos. Imagine este veleiro com mais de dez crianças pulando, subindo, correndo, foi uma loucura. De barco virou casa, de casa virou um parque de diversão. Foi muito legal essa experiência, mas foi o maior problema para os pais levarem embora. Os pais também ficaram encantados. Ninguém queria ir. Esta parte romântica é linda, mas também temos nossos perrengues. Como qualquer casa, né?”, completa Ana. 

Os perrengues não tiram o romantismo do lugar, mas também é necessário muita disposição. O veleiro tem dois tanques de água que servem para tudo no lar. Por isso, nada de banho demorado. Os pratos são lavados com água salgada, principalmente quando estão viajando. Também não se pode esquecer de travar as coisas. Lá, até a plantinha de Daniel é travada por conta do balanço do mar. 

“Água, energia, lixo, tudo precisa ser regrado. O melhor disso é saber que nossos filhos possuem uma consciência sustentável desde cedo. Uma vez, no meio da Baía de Todos-os-Santos, acabou a água. A sorte é que choveu e captamos água da chuva para o banho. Tem vezes que saímos para passear e só lembramos de travar as coisas quando tudo começa a cair”, lembra Ana. Eles ainda possuem o apoio de familiares em terra firme, que ajudam nas compras e em outros processos domésticos, como lavar roupa. 

Nos períodos de chuva, por incrível que pareça, quem está em terra firme sofre muito mais que eles, principalmente as comunidades localizadas em encostas. O barco tem uma acústica quase perfeita, o que não dá para escutar barulhos de temporais. Ele também consegue se manter estável, mesmo quando há um movimento mais agitado da maré. Sem contar que mora nas águas calmas da Baía de Todos-os-Santos. “Tem vezes que me ligam preocupados com a chuva e eu pergunto: ‘que chuva?’. Aqui dentro quase não dá para saber se está chovendo. Às vezes o pau está quebrando lá fora e a gente nem sabe”, lembra Ana. 

Uma vez, inclusive, eles perceberam um agito diferente no mar e Daniel resolveu ir lá fora para ver. “Só quando subi percebi o quanto chovia e o mar estava agitado. Nosso veleiro inclusive estava em cima do cais. Neste caso precisei me molhar para ajustar a amarração e colocar a embarcação de volta ao mar”, lembra Daniel. “Nós somos privilegiados. Veleiros chegam de todo mundo aqui e ficam encantados. Não temos ventanias, maré agitada, é tudo calmo. Todos ficam encantados. Talvez não exista um porto tão estável como o nosso no mundo inteiro. É uma pena que a moradia náutica não tenha se tornado comum num país tão rico”, completa. 

Curiosamente, a moradia a bordo é considerada como domicílio improvisado e não fixo, pelo menos para as pesquisas sobre moradia do IBGE, impossibilitando um número mais claro de pessoas que decidiram morar em embarcações. Este tipo de moradia também é considerada nômade. Para morar em uma embarcação, não é preciso nenhum tipo de licença, segundo a Marinha do Brasil, tampouco pagar IPTU. É preciso apenas licença de navegação e embarcação devidamente registrada. 

Mesmo sem pesquisas sobre esta moradia náutica, outros dados mostram o quanto este estilo de vida tem sido procurado com mais frequência. Segundo estimativa da Associação Brasileira dos Construtores de Barcos e seus Implementos (Acobar), durante a pandemia houve um crescimento de 20% no mercado náutico. No Aratu Iate Clube, onde o barco da família fica atracado, um novo píer está sendo construído para atender o crescimento da demanda.  Porém, não basta mudar. É preciso também ter muita disposição. 

“Todo mundo acaba enxergando apenas o lado romântico, mas tem que saber que existe um lado que nem todo mundo tem disposição para encarar. Você terá um espaço pequeno para morar, muitas vezes sem conforto, recursos limitados e outros aspectos que podem fazer uma pessoa desistir. O mar é seletivo, não permite qualquer um. Vejo muita gente vindo e indo com a mesma velocidade, pois não se adapta. Não é uma mudança de casa. É uma mudança de estilo de vida”, diz Daniel. 

O casal dá vários exemplos de outras pessoas que decidiram seguir o caminho deles, mas não duraram muito tempo. Outras três famílias moram no Aratu Iate Clube, mas são aposentados e com filhos criados. A maioria chega no local na quinta e passa o fim de semana, deixando o lar da família mais parecido com um final de semana em terra firme. Mas isto tem prazo para terminar. 

Para os Cerchiari, se mudar para o barco foi apenas uma fase completada para uma missão ainda maior: içar velas e levantar âncora. A pretensão é, em pelo menos quatro anos, conhecer o mundo sem prazo de retorno. Para isto, a rotina de uma vida tradicional ainda precisa ser seguida com disciplina. Daniel e os filhos possuem cidadania italiana, enquanto Ana tem portuguesa. Isso já facilita na hora de entrar em águas internacionais.

“Ainda precisamos de alguns anos para desvincular definitivamente da rotina terrestre, pois a preparação financeira é o calo do projeto. É preciso muito planejamento e preparação financeira, pois não queremos voltar”, avisa Daniel, que pretende conhecer o mundo. O casal inclusive está se preparando para o crescimento das crianças a bordo. Eles, além de pais, serão professores quando saírem sem data de retorno, no método homeschooling. Especialistas pedem cuidado sobre esta mudança tão repentina nas crianças, principalmente com a falta de contato com pessoas da mesma idade.

“Uma decisão como essa implica planejamento e bastante cuidado e quando há crianças o cuidado precisa ser redobrado, mas também pode trazer valiosas experiências culturais e relacionais   para pais e filhos, desde que sejam tomadas as medidas que preservem o desenvolvimento das crianças”, disse Tatiana Santos, psicanalista especialista em infância e adolescência. O casal assegura que está tomando todos os cuidados com a preparação. 

O veleiro também precisa de ajustes para se manter tanto tempo em alto mar. Um deles, por exemplo, é um dessalinizador, que pode custar um carro zero. “Se a pessoa pretende morar num barco, é preciso pensar na embarcação como uma casa, não como um automóvel, por exemplo”, avisa Daniel. Um veleiro voltado para moradia varia entre R$ 300 mil e R$ 2 milhões. Uma casa, de fato. O preço, assim como nas casas, varia de acordo com o conforto e equipamentos instalados nele. 

Enquanto esta família náutica não levanta âncora e cai no mundo, eles matam a gente de inveja. Nos finais de semana, eles não precisam enfrentar um engarrafamento para passar um domingo na praia. Só precisam içar as velas e dar um pulinho na Ilha de Maré, por exemplo. Em cada passeio é uma nova descoberta, golfinhos, peixes pulando no barco e até araras pousando no veleiro. Se alguém ainda tiver a audácia de perguntar à família Cerchiari se eles se arrependem da escolha, certamente eles vão responder com uma música de Caymmi: “A onda do mar leva, a onda do mar traz. Quem vem pra beira da praia, meu bem, não volta nunca mais…”. 
 

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