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Ouça a terapia: repórter vai a retiro na Bahia e fica três dias em silêncio absoluto

No início, a boca fica seca, a respiração mais ofegante e os ouvidos começam a escutar o menor dos burburinhos da natureza. Para quem nunca respeitou nem um minuto de silêncio, passar três dias sem dizer uma palavra é angustiante. Passei três dias no retiro do Centro de Estudos Budistas Bodisatva (CEBB), no Recôncavo Baiano, onde 16 pessoas participaram do Retiro de Meditação e Silêncio. Uma experiência que pode ser perturbadora para quem não consegue parar de falar ou mexer no celular. Pior: como fazer uma matéria sem fazer perguntas, pois todas as fontes estão caladas e meditantes, incluindo o repórter?

Todas minhas credenciais apontavam para uma pauta frustrante. Gêmeos, jornalista e culhudeiro. Falar sempre foi uma arte. O ‘convite’ para ficar em silêncio veio quatro dias antes do retiro, em pleno aniversário de 41 anos. Curtia uma folga, resenhava com parentes e tomava uma gelada em casa. A Alexa tocava forró, o filho assistia Youtube no volume máximo e a sogra gritava nos áudios que enviava pelo zap. Uma família barulhenta tradicional. “Porra, o jornal me inventou de ficar três dias num retiro budista do silêncio, bicho. Que esparro da zorra, vou nem responder”, disse para minha esposa, que teve uma crise de riso. “Você fala pelo cotovelo. Não vai durar cinco minutos lá”.

Afinal, por que falamos tanto? O ser-humano é um falador por natureza e a vida moderna não ajuda nada na arte de calar-se. Mesmo sozinhos, estamos enviando áudios intermináveis no Whatsapp ou redes sociais. Segundo o livro ‘O Cérebro Feminino’, da neuropsiquiatra Louann Brizendine,  um homem fala, em média, sete mil palavras por dia, enquanto a mulher chega a 20 mil. Pesquisas mais recentes equilibram a equação, alegando que a média para ambos, na verdade, varia entre 15 e 16 mil. 

Junte isso ao celular, um amplificador na arte de falar. O Brasil se tornou líder mundial do tempo de uso durante a pandemia, diga-se de passagem. Segundo relatório da plataforma AppAnnie, em 2021 o brasileiro passou uma média diária de 5,4 horas por dia no celular (em 2019, eram 4,1 horas). O Whatsapp lidera entre os aplicativos mais utilizados no país, seguido pelo Tik Tok.  Agora, imagine reduzir isto a zero, longe de qualquer sinal de celular, no meio da natureza e fazendo oito horas diárias de meditação.  

O retiro fica localizado na zona rural do município de Santo Amaro, na BA-510, um local quase isolado da vida urbana. Para  não fazer feio, adiantei a prática do silêncio no caminho desta aventura silenciosa, enquanto o motorista conduzia uma viagem de 1h45. Tentei ficar calado, mas cinco minutos de estrada o piloto estranhou. “Alguém morreu, velho?”, disse. Depois, emendou. “E seu Vitorinha, em?”. Bestei a resenhar, falando sem parar, de todos os assuntos possíveis. A tarefa, de fato, não seria fácil. 

O templo budista em construção no Recôncavo

O local tem uma energia diferente. Um portão vermelho antigo e um verde sem tamanho na parte interna convida qualquer um a entrar. A primeira impressão ao chegar no lugar é que tudo parece calmo e sereno. E silencioso também. O local funciona onde era uma pousada ecológica de um francês. A partir dali, na parte de dentro, respirei fundo e me calei. “Seja bem vindo”, disse Ana Ric, na chegada. “Oxe, não era para ficar calado?”, pensei. Ainda não, pois chegamos com uma hora de antecedência. Ana Ricl é uma das tutoras do CEEB. Ela é aluna desde 1997 do Lama Padma Samten, uma das principais vozes do budismo no Brasil e também foi uma das primeiras pessoas a explicar a importância do silêncio. 

“Todas as pessoas deveriam ter um momento de parar, ficar em silêncio e observar a própria mente. Estamos demandando muitas coisas nas nossas vidas que estão fora deste conhecimento interior. Esquecemos de nós.  É o dia a dia, trabalho, sobrevivência, demandas de filhos, família, incertezas da vida. A vida é muito incerta, né? Independentemente da vida externa, deveríamos constantemente parar e ficar um tempo em silêncio, como um reboot na máquina. É tão bom…”, disse.

Com o tempo, as pessoas foram chegando, todas aparentemente com conhecimentos prévios sobre silêncio e meditação. Não me identifiquei como jornalista. Ninguém quis saber também. Jantamos  uma alimentação ovolactovegetariana, com alguns alimentos de origem animal que o próprio nome diz. Apesar de carnívoro, adorei a comida feita por uma das participantes do retiro, de nome Carla, com todas as características de um monge budista. 

Lá, além da meditação e silêncio, todos tiveram algumas tarefas voluntárias, como varrer o templo, limpar as folhas secas, cortar legumes, cozinhar, entre outros. Fiquei com a tarefa de lavar as panelas das refeições. Tudo em silêncio, claro. O frio já apertava quando nos encontramos no templo budista em construção no meio da natureza. Tapetes e almofadas vermelhas e douradas estavam divididas nos dois extremos do templo, um de frente para o outro formando um grande corredor central. No centro, uma escultura do Buda Gautama parecia observar tudo. Lá, o start para o silêncio seria dado. 

Antes, porém, o facilitador budista Gilberto Costa falou brevemente sobre o retiro. Seriam cerca de oito horas diárias de meditação, o que me causou espanto, pois também nunca meditei na vida. A mão suava e o silêncio começou a ser o menor dos problemas. 

“O silêncio é importante para ouvir a si mesmo. O silêncio possibilita ouvir os nossos próprios ruídos, busca o ponto de equilíbrio. Com a meditação, você vai se conectar com o próprio eu, mas é importante não criar expectativas. A experiência pode ser maravilhosa, mas conflitante também. As reações são variadas, assim como as sensações deste momento só seu. Tem gente que chora, ri e saem com ainda mais conflitos internos. Porém, vai sair sabendo onde pode chegar e o que pode melhorar”, disse Costa, explicando também como seria o processo de meditação. 

“Tem gente que acha oito horas normal para trabalhar, por que meditar durante este tempo pode ser desgastante? Outra coisa: nós estamos em silêncio, mas o mundo não fará silêncio para nós. Vamos ouvir pássaros, mas também vai passar um carro pela estrada tocando arrocha. O mundo vai trazer para nós uma série de sensações de percepções, estimular nossos sentidos, corpo e mente, além de disparar nossas emoções. Use isso ao seu favor, busque o equilíbrio. Vamos, a partir de agora, iniciar o silêncio”, disse. Recebemos um crachá com a frase “Estou em silêncio”. A partir dali, o silêncio seria absoluto.

As primeiras horas e silêncio absoluto é um pouco angustiante, principalmente na adaptação de ações diárias, como a própria educação. Como dar bom dia calado? Como pedir mais sabão para lavar uma panela engordurada? Também é possível sentir o corpo e as emoções mudarem.  Dá também uma leve impressão de solidão, mas isso não é ruim, pois mostra o início do processo de autoconhecimento. Na verdade, seu corpo está se adaptando, incluindo uma parte muito importante do corpo chamado hipocampo. É um lugar no cérebro responsável pelas emoções, memória, concentração e até atividades hormonais.

Um estudo publicado na revista Brain, Structure and Function, em 2013, avaliou os benefícios do silêncio, independentemente dos barulhos externos. Os cientistas mostraram que duas horas em silêncio desencadeiam uma série de benefícios ao corpo, mas principalmente na ativação de células do hipocampo. 

O silêncio não é tão perturbador assim. Muito pelo contrário, afinal. Após 10 horas de silêncio, o corpo parece estar adaptado à sua vontade. Podemos ouvir mais o exterior, nossa respiração é menos ofegante, o olho consegue captar tudo ao redor e aprendemos  a nos comunicar com olhares e sorrisos de canto de boca. O celular não fez falta hora nenhuma. O silêncio passou a ser confortante, inclusive. Contudo, estava longe de um final feliz e o grande desafio era outro: como se medita?

O ritmo de meditação era intenso para um iniciante que caiu de paraquedas. O despertar era às 4h50, com sinos tibetanos anunciando o início dos trabalhos. Como um monastério budista no Tibet, a meditação começava cedo, às 5h. Aquele frio, em posição de lótus, a cada 15 minutos o sino tocava para ajeitar a postura e abrir um pouco os olhos. Nada era obrigado. Poderia, inclusive, meditar sentado numa cadeira ou se retirar quando quisesse. 

Os primeiros trinta minutos foram de inquietação, pensamentos distantes, um conflito interno exaustivo com a própria mente, que parecia uma outra criatura dentro de mim. Praticamente impossível controlá-la. “Meu Deus, quando esta pandemia vai acabar.  Que dia vou escrever esta matéria. O diabo do Vitória joga hoje. Será que já se passaram 1 hora de meditação?”. Tudo fazia fugir a concentração, os pensamentos fugiam. Era como uma criança levando um pitbull para passear. Afinal, quem estava conduzindo quem: eu ou minha mente?

Nem toda meditação leva ao sentimento de prazer e satisfação. Vale dizer que o problema, neste caso, não é a prática, mas o que o praticante carrega dentro dela: inquietações, frustrações, todos os problemas que levam ao descontrole emocional. A meditação pode acentuar tudo isso no momento . É aí que conhecemos o monstro chamado Mara Devaputra, uma espécie de demônio budista muitas vezes confundido com o próprio ego humano. Seu exército é formado por sentimentos internos próprios do homem, como medos, dúvidas e raiva. Ele inclusive é o demônio que tentou atrapalhar a meditação do próprio Buda Gautama.

A ciência prefere não tratar de demônios, mas pesquisas confirmam que a meditação pode despertar sentimentos contrários ao esperado. O mergulho profundo na consciência ativa  efeitos psicológicos adversos do esperado. Não é culpa da meditação, mas desse monstrinho aí preso em você. A University College London, da Inglaterra, analisou 1232 pessoas que praticavam meditação pelo menos uma vez na semana. Cerca de 25% relataram algum tipo de sentimento perturbador. Por isso, é sempre bom ter um conhecimento mais profundo desta prática budista, pedindo sempre ajuda a especialistas. O ocidente inclusive resolveu chamar a meditação de mindfulness, desassociando com o lado espiritual da religião.  

“O que acontece é que muitas práticas meditativas, como o Mindfulness por exemplo, que é o tipo de meditação que eu trabalho, nasceu nos países orientais, muito vivenciada pelos budistas. As ciências psicológicas passaram a estudar essas práticas e a validá-las cientificamente através de muitas pesquisas”, disse Alison Souza, psicólogo e professor da Unesulbahia, que recomenda a prática de meditação para seus pacientes. 

Voltemos aos monstros internos. Entre sábado e domingo, o silêncio não era mais um problema. Estava gostando. A grande batalha era travada em cada momento de meditação, uma batalha interna entre eu e eu mesmo. Cheguei a mudar meu lugar para um local que batia sol para ver se fritava o juízo, mas nada. Creio que venci algumas batalhas, cheguei a passar alguns momentos de relativa paz e com a mente vazia. Pouco tempo, mas foi uma vitória. 

Ao meio-dia de domingo, Gabriel Costa abriu os olhos, tocou o sino, e decretou o fim do silêncio. Pediu para cada um contar sua experiência. Na minha hora, apenas o que veio foi o silêncio. A garganta fechou, a lágrima desceu e as primeiras palavras saíram trêmulas. Não me controlava mais. 

O silêncio, que achei ser o maior dos problemas, foi algo maravilhoso. A meditação, apesar dos confrontos contínuos com a própria mente, foi de extrema necessidade para me conhecer e saber o quanto é preciso evoluir. Se esta matéria foi para ser jornalística, me perdoem o excesso de primeira pessoa. É que estamos falando justamente disso, do cuidar de si. O budismo reforça a ideia de que os extremos fazem mal e não existe uma verdade absoluta na busca pela saúde espiritual. É o caminho do meio que devemos traçar. Você é, sem exceção, a fonte de todo o benefício e felicidade. 
 

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